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“Vasa-Barris” (1998)

para septeto: flauta, clarinete em si bemol, trombone, violino, viola, violoncelo e contrabaixo.

Quando eu comecei a trabalhar em “Vasa-Barris”, minha idéia era a de conceber algo como um poema épico ou um retrato histórico, em resumo, um comentário musical sobre a Guerra de Canudos, um dos eventos mais sangrentos da história do Brasil do século XIX. Integralmente descrita por Euclydes da Cunha em seu importante livro “Os Sertões” (o meu guia principal na abordagem do tema de Canudos), esta guerra sempre estimulou minha imaginação com suas espantosas e quase absurdas histórias de uma cidade-favela de fanáticos religiosos, pessoas miseráveis, esfomeadas e rejeitadas, desafiando a recém-nascida República e resistindo a hordas de soldados fartamente equipados. Mestres de uma fantástica técnica de guerrilha, estes aldeões nunca se renderam e lutaram literalmente até a morte do último homem, após meses de combates sangrentos e milhares de baixas. Na verdade, minha idéia não era a de compor música programática mas, ao contrário, eu procurei pensar mais em termos de algumas pinturas e murais épicos históricos sobre vidas de santos que eu observei em alguns museus, onde diversos episódios do tema proposto, que obviamente não haviam acontecido ao mesmo tempo, coexistiam na composição da pintura em um único lugar, um único tempo sem data, um mural unificado. Com isto em mente, eu trabalhei diversos fragmentos independentes (algo como peças bem curtas, todas representando pensamentos completos), cada um desenvolvendo algum aspecto do tema histórico de Canudos. Todos estes fragmentos têm durações diferentes e caráteres diferentes. Alguns destes fragmentos possuem elementos estruturais e idéias musicais em comum entre si, enquanto outros não, absolutamente. Meu próximo passo foi estudar os efeitos da superposição destes fragmentos, não somente pensando em ter os fragmentos se sucedendo imediatamente mas também considerando que os fragmentos poderiam ser ouvidos simultanemente. Basicamente, o que “Vasa-Barris” se tornou foi meramente o produto desta polifonia de fragmentos. De certo modo, foi assim que eu tentei realizar a analogia entre as pinturas épicas que mencionei anteriormente e a música que eu queria escrever para Canudos. Como curiosidade, “Vasa-Barris” era o nome do rio que passava bem pelo meio da cidade de Canudos naqueles dias de 1897.
Esta obra foi estreada em 09/Dez/1998 no Kathryn Bache Miller Theater, New York, EUA, pelo Ensemble FA de Paris, regido por Dominique My.



partitura: gravação:

The Ensemble FA


Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado
as estradas fascinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos,
imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim
mesmo - repugnante, aterrador, horrendo… Entretanto, lá tinham ido,
muitos, alimentando esperanças singulares. Deparavam o Vasa-Barris seco,
ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os
flancos entorroados das colinas…

Euclydes da Cunha (1866-1909)
“Os Sertões”